Quem melhor para partilhar as suas memórias das quentes sessões de cinema de Verão nos longínquos anos 80, que Pedro Cinemaxunga - baptizado Pedro de Alarcão Lombarda - o notório blogger de cinema, que desde 2003 fascina a Internet com o seu estilo característico e inimitável de prosar sobre a sétima arte e a vida. E podem ter a certeza que são umas memórias interessantes! Depois do texto lido visitem o santuário xunga - "Cinemaxunga" - e digam que vão da nossa parte.
Menores de idade e pessoas impressionáveis, leiam de olhos fechados:
"1989, Agosto em Monte Gordo. Tinha acabado de recuperar a consciência daquilo que vim mais tarde a saber ser um black-out de 21 horas. Numa festa de Verão milhares de respeitosas donas de casa vibravam libidinosamente ao som de uma banda em palco. Demorei algum tempo a perceber o que se passava, o som enrolado em flanger e um forte sabor a laca Fiero que parecia escorrer em bica pelo esófago não ajudavam a melhorar a percepção. O Trio Odemira tocava o Anel de Noivado e fui apanhado desprotegido no meio das suas harmonias hipnóticas e na execução perfeita de uma música que já na altura era um velho clássico “Inundada no seu pranto. O seu vestido vai molhando, ao chorar de amor por mim”, cantavam imperturbáveis pelos gritos histéricos, desmaios e apelos ao deboche adúltero. “Faz-me um filho”, gritava uma octogenária semi-nua estranhamente atraente que parecia acariciar-se ao meu lado. Não sei se foi do álcool, das drogas ou de uma cataplana de peixe que não me caiu nada bem, mas senti um capacete de eletricidade estática a massajar-me as têmporas, como tentáculos de ondas alfa e impulsos de telequinese, e os edifícios pareciam ondular ao ritmo dengoso dos baladeiros alentejanos. Tonico, no entanto, não parecia impressionado, estava de facto amuado porque o meteram a vender bebidas e petiscos numa noite em que passavam Delta Force 2 no cinema Mariani.
Esta não é tanto a minha história mas a história de Tonico, um jovem de 14 anos que trabalhava numa esquina de Monte Gordo a vender fruta. O seu único objectivo de Verão era ganhar o suficiente para ir ao cinema todos os dias. O Cinema Mariani na praia de Monte Gordo funcionava com dois filmes diários só a partir do pôr do sol porque metade da sala era esplanada. As doubles features eram compostas por um filme novo e um do dia anterior. Tonico via-os sempre duas vezes. Ele preferia Bud Spencer, porrada, ninjas, comédias badalhocas e blockbusters de anos anteriores, mas não recusava um Fellini que por vezes aparecia por engano, emuscuido em lotes Giallo, Spaghetti Western, slashers americanos e eróticos europeus. Não era grande fã de terror, mas era menos fã ainda de ficar em casa.
Em época de fervilhante animação, as noites animavam aquela zona obscura do vilarejo balnear com cinéfilos de todos os quadrantes. Se os turistas gostavam de comparecer a tempo e apreciar a experiência de imersão em cadeiras de madeira ao som da mastigação de sementes de girassol e gargarejar de Sucol e Frisumo, os locais tinham uma estratégia diferente na hora de comprar bilhete, dirigiam-se à bilheteira e perguntavam “Ouve lá mô, já mataram o mau?”. Em caso de resposta negativa compravam o bilhete e apreciavam o que restava da película ao balcão do bar com uma bela cervejinha.
Foram largas dezenas de filmes que vi com Tonico, que sendo pouco eloquente, se exprimia entre o “espectacular” e o “bué de fixe” (fichi, no dialeto local). Um jovem pouco exigente mas profundamente apaixonado pela sétima arte.
Acabado o Verão, Mariani abria aos fins de semana e com chuva, sol, trovoada ou queixas dos vizinhos à PSP o cinema continuava forte. Uma comunidade fiel em sessões animadas, em que se gritava, ria e comentava à boca cheia. No dia em que lá revi o Rocky IV não se ouvia o som vindo das colunas com a multidão aos gritos a apoiar o Italian Stallion. Havia pessoas de pé em frente ao ecrã e no final homens de barba rija, queimados pelo sol do sul, choravam copiosamente com a vitória de Balboa, a sua vitória, a nossa vitória, carago!
Foi difícil para mim ambientar-me ao Algarve, onde vivi 5 preciosos anos entre a adolescência e a juventude. Eu era do Norte, trocava os Vs pelos Bs, dizia “Queijo” em vez de “Quêjo”, tinha boas notas e não percebia uma palavra de espanhol. O cinema foi muito importante para me integrar com os locais que após uns meses de belas sessões de matança em cópias riscadas e bobines trocadas já não me davam surras nem me roubavam a carteira com tanta frequência."
Texto publicado anteriormente na revista Take de Agosto de 2015 e Enciclopédia de Cromos em Setembro de 2015.
Novamente, agradeço ao Pedro esta colaboração. Visitem o blog dele: "Cinemaxunga".
P.S. - Como algarvio quero apenas declarar que nos anos 80 raramente roubava carteiras a forasteiros.